sexta-feira, 27 de maio de 2011

ARTIGO

Fukushima: um alerta para o setor nuclear brasileiro*


Anya Cabral**

O acidente de Fukushima Daiichi, iniciado em 11 de março, acordou o mundo para o risco nuclear, adormecido desde Chernobyl, em 1986. O acidente, ocorrido no Japão, o país mais bem preparado a reagir em caso de catástrofes, coloca em xeque a segurança nuclear repercutindo em uma cadeia sucessiva de reações ao uso dessa fonte de energia para produção de energia termoelétrica.

A nuvem de radioisótopos, que sobrevoa oceanos e continentes deixando um rastro contaminante, já causou a derrota nas eleições regionais do partido de Angela Merkel na Alemanha, e a lépida corrida de Sarkozy ao local do "sinistro" na esperança de reverter a sua queda de popularidade na França e fazer negócios, honrando a condição de representante comercial de seu país.

O acidente de Fukushima explodiu uma crise institucional do setor, que tal como a radiação se alastrou por diferentes países. Embora não se tenha notícias de recente imigração de radioisótopos japoneses ao Brasil, essa crise atingiu em cheio a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), quando veio a público que o órgão responsável pela legislação e controle da radioproteção não respeita as normas ambientais brasileiras. Com a demissão do corpo diretor do órgão, o governo brasileiro despertou para a necessidade de discutir seu programa nuclear.

Apesar dos esforços para conter a radiação, a mobilização japonesa, que incluiu a oração do imperador Akihito em inusitada aparição televisiva, o acidente nuclear está longe de ser controlado. A empresa privada Tepco (Tokio Electric Power Company), responsável pela operação de dezessete reatores nucleares no Japão, dez deles localizados na prefeitura de Fukushima anunciou o fechamento de quatro dos seis reatores de Fukushima Daiichi. A operação de desmantelamento, no entanto, não é uma tarefa simples. É preciso resfriar o reator de modo a acessar o núcleo. Esse procedimento, em Three Mile Island, levou seis anos. O governo japonês aventou a possibilidade de estatização da empresa, demonstrando que as forças "salvadoras" do mercado pouco resguardam as empresas privadas de situações de perdas, que são constantemente "socializadas" e mais uma vez revelam a cumplicidade do Estado com o grande capital.

A falta de coerência nas informações divulgadas, com erros de milhares de becqueréis, desmentidos posteriormente, descobre a manipulação da informação. Aliás, a Tepco possui tradição na adulteração de dados e omissão de incidentes (vazamentos radioativos, rachaduras em canos e até acidentes fatais) como no escândalo que abalou a empresa .em 2002 e levou à renúncia de altos executivos da corporação. O controle de informações protege os interesses das operadoras de usinas nucleares com rebatimento em todas as áreas produtivas do setor nuclear, cujas atividades podem ser seriamente afetadas pelos humores da opinião pública. Preocupação, aliás, amplamente justificada uma vez que as conseqüências da contaminação radioativa têm efeitos globais, mortais e seculares.

Plantea-se o recorrente debate da eficiência da privatização de setores estratégicos, como o da energia, onde o conflito de interesses entre o público e o privado resulta na priorização do lucro em detrimento da segurança, com a conivência das agências reguladoras. Os Estados Unidos não escapam à regra: um relatório de auditoria da NRC (Nuclear Regulatory Commission) revela que as empresas operadoras de usinas nucleares omitem informações sobre ocorrência de falhas em seus equipamentos. A própria NCR foi alvo de críticas do então candidato à Presidência, Barack Obama em 2007, que acusou o órgão de ser refém das empresas que deveria regular.

No Brasil, a Constituição atribui que todas as atividades relacionadas à área nuclear são da competência da União, cabendo também à União legislar com exclusividade sobre atividades nucleares de qualquer natureza. Os principais órgãos responsáveis pelo exercício do monopólio do Estado são a CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear; a INB (Indústrias Nucleares do Brasil); a Eletronuclear; e a Nuclep (Nuclebras Equipamentos Pesados S.A.).

A organização do setor nuclear iniciou-se na década de cinqüenta, no pós-guerra, quando a principal preocupação quanto à energia nuclear estava relacionada à defesa nacional. Isso ocasionou uma concentração das atividades nucleares sob um restrito controle do Estado. A criação da CNEN correspondeu a essa época. As empresas mistas do setor nuclear foram criadas a partir dos anos 1970, para viabilizar o Acordo Brasil-Alemanha. Inicialmente seriam empresas bi-nacionais. Com a paralisação do Acordo, algumas delas foram fechadas e outras transformadas em empresas mistas brasileiras, como a INB e a Nuclep. A criação da Eletronuclear, em 1997, fez parte do processo de privatização de Furnas, e da fusão da área nuclear de Furnas Centrais Elétricas S.A. com a Nuclen Engenharia e Serviços S.A.

O Brasil possui duas usinas nucleares (Angra e I e Angra II) e está construindo uma terceira, Angra III, todas elas localizadas na Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, no município de Angra dos Reis, Estado do Rio de Janeiro. A operação de Angra I e Angra II e a construção de Angra III são da competência da Eletronuclear.

O Programa Nuclear Brasileiro prevê a construção de pelo menos mais quatro usinas nos próximos anos, sendo duas no Nordeste e duas no Sudeste. O acidente de Fukushima, que sacudiu o mundo em torno da exeqüibilidade segura do uso da energia nuclear para produção de energia elétrica parece não afetar a opinião pública brasileira. Se o incidente serviu para revelar irregularidades no sistema de concessão de licenças ambientais, não provocou uma mobilização suficiente para reverter as metas do Programa Nuclear Brasileiro. Pelo contrário, nota-se uma movimentação de setores ligados ao nuclear para reafirmar a competência dos responsáveis pela escolha da localização de usinas nucleares no Brasil, que jamais construiriam esse tipo de empreendimento em locais sujeitos a abalos sísmicos. Alheios à catástrofe, jornais anunciam a continuação da disputa dos Estados nordestinos para sediar o Complexo Nuclear do Nordeste.

Mas quais as conseqüências de um acidente nuclear na central de Angra dos Reis? A despeito das declarações sobre a inexistência de terremotos o Estudo de Impacto Ambiental de Angra III registra abalos sísmicos na região de até 4,3 na escala Richter e não é impossível que o aumento do nível do mar venha a danificar o funcionamento da Central. Mas o ponto mais alarmante é a inoperância do Plano Emergencial, em caso de acidente. O Plano prevê uma zona de impacto de apenas quinze quilômetros no entorno da Central nuclear e recomenda a abrigagem como primeira medida de proteção. Ora, é de conhecimento público que as moradias das urbanizações do entorno da central não oferecem proteção contra radiação. Telhados sem forro, portas e janelas impossíveis de serem corretamente vedadas, construções que não seguiram nenhuma norma específica de proteção em caso de fugas radiativas. O Plano prevê como rota de fuga o mar, uma vez que a estrada Rio-Santos é sujeita a deslizamentos, embora inexistam balsas suficientes para a evacuação da população atingida.

A Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto é reconhecida como muito segura pelos padrões internacionais. Os responsáveis pela operação da central não hesitam em desligar os reatores ao menor sinal de alarme. Esta opção só é possível porque a central é operada por uma empresa estatal. A privatização do setor, ensejada pelo lobby nuclear, poderia reverter tais prioridades, tanto mais porque as empresas privadas prováveis candidatas a operar as usinas nucleares no Brasil são estrangeiras.

Esses argumentos indicam os riscos representados pela privatização do setor, bem como o imperativo de que este seja operado exclusivamente pelo Estado. Cabe, por último, uma reflexão sobre a real necessidade de um aumento da disponibilidade de energia, mediante a expansão da geração de energia de origem nuclear, em um país que dispõe de tantos outros recursos energéticos.


*Publicado do Boletim do IPS de abril de 2011
**Economista, mestranda em ciências sociais, Diretora Administrativa do IPS



Nenhum comentário: