segunda-feira, 9 de maio de 2011

ARTIGO

Artigo*
Riqueza e pobreza no semiárido: o binômio necessário
Ildes Ferreira de Oliveira**



O processo de industrialização brasileiro iniciou-se pelo Nordeste, com a produção de açúcar e depois a indústria têxtil (que nasceu na Bahia em 1849). Foi a partir de meados do século XIX, sobretudo com o advento da República, que o governo passou a direcionar seus programas para o Centro-Sul. Até 1910, o número de operários nordestinos igualava-se ao de São Paulo, lembra Celso Furtado; as coisas pioraram a partir de 1920 com a política de substituição das importações, deixando para o Nordeste a função de produtor primário baseado no latifúndio improdutivo para abastecer o novo e crescente mercado do Centro-Sul.

O atraso da Região Nordeste sempre foi atribuído às condições naturais, especialmente ao clima, com seus períodos cíclicos de seca. Foram pensadas, então, algumas medidas que pudessem aliviar a situação de uma parcela da população que vivia da agricultura e era vítima dos efeitos das secas, e servissem, também, de resposta governamental perante a opinião pública. Criou-se, em 1909, a Inspetoria de Obras contra as Secas que, depois de várias mudanças, transformou-se no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) em 1945; em 1946, instituiu-se o Polígono das Secas; em 1952, o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e em 1959, a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Em 1989 a área do Polígono das Secas foi ampliada a passou a denominar-se Região Semi-Árida, sofrendo nova alteração em 2007 ; em 2004, criou-se também o Instituto Nacional do Semi-Árido (INSA) e em 2005 o Centro de Tecnologias Estratégicas do Nordeste (CETENE). Nenhum desses órgãos está sediado no Estado com maior área semiárida, a Bahia. 
Apesar dessas iniciativas, as desigualdades socioeconômicas regionais só se agravaram. Enquanto a Região Sudeste, com 42,3% da população brasileira participa com 56,5% da formação do Produto Interno Bruto (PIB ) nacional, a região Nordeste, com 28,0% da população, participa com apenas 13,1%. Observe-se que a relação PIB-população para o Sudeste corresponde a 1.3, enquanto que para o Nordeste é de apenas 0.47 – pouco mais de 1/3. Assim, a pobreza no Nordeste continua atingindo mais de 50% da sua população, o que representa mais de 40% de todos os pobres do país. 
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A área do semiárido baiano corresponde a 40% do nordestino (393.056,1 km²) e abrange 69,7% do território estadual, 266 municípios (de um total de 417) e uma população (2008) de 6,5 milhões de pessoas (49,4% da população do Estado); a sua participação no PIB estadual, caiu de 26,9%, para 26,3% entre 2002 e 2005 , com o agravante de que 50% estão concentrados em 17 municípios. É nessa região que estão os piores indicadores sociais do Estado.
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Ao contrário do que pregou ao longo do tempo, o semiárido é rico em recursos naturais. Não há escassez de água, como sempre se divulgou. A região possui a maior concentração de açudes do mundo, com um volume armazenado estimado em 37 bilhões de metros cúbicos de água e uma reserva subterrânea que possibilita extrair 20 bilhões de litros por ano. A média anual das precipitações corresponde a seis bilhões de metros cúbicos de água, volume seis vezes superior à descarga anual do rio São Francisco ; conta ainda com a presença de importantes rios como o São Francisco, Parnaíba, Jaguaribe, Capibaribe, Piracha-Açu e rio Una, além de dezenas de outros de menor porte. A ONU considera a situação de escassez de água somente quando a disponibilidade mínima chega a 1.000 m³ por pessoa, por ano. No Nordeste, a menor disponibilidade está em Pernambuco, com 1.270 m³/pessoa/ano, chegando a 9.185m³ no Piauí. São muitos e variados os tipos de minerais; excluindo-se o petróleo e gás, cujas reservas situam-se na região litorânea, a Bahia responde por 34,4% dos recursos minerais nacionais. Dos minérios disponíveis, 6,0% são metálicos, 14.3% não metálicos, 11,0% são gemas e diamantes e 34,5% energéticos . Dispõe-se, ainda, de minerais estratégicos como o urânio, cujas reservas estão localizadas na Bahia e no Ceará. Alega-se, também, que os solos do semiárido são de qualidade inferior. Há muitos exemplos de situações muito piores que foram solucionadas com a adoção de tecnologias apropriadas. Podem-se citar os casos da região do Porto, em Portugal, e da Holanda. No primeiro, os solos de baixa fertilidade produziam uvas que resultavam em vinho de qualidade inferior, o que foi corrigido e o Porto se destaca no mundo inteiro pelas uvas e vinhos da melhor qualidade; no segundo caso, a solução foi ainda mais radical: cinco anos após a invasão do território holandês pelo mar, em meados da década de 50 (século XX), o governo recuperou as terras que ficaram submersas com a construção do super dique e as transformou em áreas de boa qualidade para a agricultura. Há, ainda, extraordinário potencial energético no semiárido, com quatro importantes hidrelétricas e uma de pequeno porte com manchas de excelência de insolação que poderiam substituir as fontes fósseis de energia: podemos dizer, portanto, que a energia que sustenta a civilização do petróleo equivale à obtida em um dia de energia solar . Deve-se levar em conta, ainda, que os recursos naturais, apesar de importantes, não são pré-condição para o desenvolvimento, o que é reconhecido inclusive por muitos economistas neoliberais. 
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A região semiárida é propícia para muitas atividades agropecuárias, como por exemplo: a) a produção de fibras vegetais: o caroá (que fez parte da economia nordestina até 1940); o algodão (com destaque para a Bahia), cuja variedade considerada de melhor qualidade, conhecida como mocó, é apropriada para regiões de baixa pluviosidade. O sisal, considerado o ouro verde em época remota, é outra cultura típica do semiárido: além da fibra, o sisal pode oferecer ração para ruminantes, compósitos para a indústria automotiva e para a construção civil, briquetes para produção de bioenergia, bioinseticida e biofertilizante; b) piscicultura: ao contrário do que possa parecer, o clima seco, de baixa pluviosidade e de alta evaporação, é o paraíso para a piscicultura; parte considerável da produção pesqueira continental brasileira sai do semiárido. c) caprinocultura: as condições climáticas são apropriadas para a criação de caprinos, apesar disso, a participação brasileira é menos de 2% da produção mundial, cuja liderança pertence a países africanos e asiáticos; d) está no semiárido grande parte das culturas oleaginosas nacionais (mamona, soja, girassol etc.), sendo que no caso da mamona, a Bahia responde por 90% da produção. 
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Por que, então, com tantas potencialidades, o semiárido continua pobre e atrasado? As respostas para esta pergunta estão na economia, mas, sobretudo na sociologia e na política.
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As forças políticas nordestinas (oligárquicas e modernas) souberam, ao longo da historia, manter seu domínio sobre a população e disso extrair os benefícios econômicos decorrentes; construíram no imaginário coletivo o paradigma da inviabilidade econômica da região com a noção de espaço hostil, lugar de pobreza, fome e atraso, usando como combustível a relação de dependência da população, mantendo-a sempre submissa e obediente. Levaram a própria população a acreditar que os problemas da região eram decorrentes das adversidades naturais e até da vontade de Deus. Estava preparado o terreno para a efetivação dos interesses dominantes: condenada ao castigo da natureza, a população, para sobreviver, obrigava-se a recorrer à generosidade dos poderosos que, nos momentos mais críticos, providenciavam a “cesta básica” para matar a fome, o carro pipa para saciar a sede (hoje substituído pela cisterna), de vez em quando um emprego em algum órgão público. Conseguiam (e conseguem ainda hoje) manter a população dependente e submissa que retribui sua gratidão através do voto, mantendo-os no exercício do poder político. Essa situação perdura até os dias atuais, confundindo-se os espaços públicos com os privados para a satisfação dos próprios interesses. É a democracia resultante de um mal-entendido que nos fala Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.
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Mas os grupos políticos dominantes não buscam somente a satisfação de suas vontades e não atuam apenas em seu próprio interesse; eles são, também, instrumento de uma entidade sobrenatural chamada capitalismo cujas regras são ditadas pelo grande capital internacional que se apropria dos excedentes produzidos na região semiárida, especialmente a partir da agricultura e da mineração. Basta um rápido olhar sobre o sistema produtivo da região para constatar que é o capital internacional que explora as ilhas de prosperidade agrícolas espalhadas por toda região (na Bahia, o destaque é para a fruticultura de Juazeiro e produção de soja no Oeste), e que controla a exploração mineral. Ao semiárido, resta seguir sua vocação de produtor primário atrasado, mantendo à míngua, somente no território baiano, uma população duas vezes superior à do Paraguai. Assim, o semiárido baiano continuará cumprindo sua função nutritiva no xadrez do processo de acumulação conduzido pelos grupos dominantes, sob os aplausos dos partidos políticos e dos movimentos sociais. É o subdesenvolvimento planejado, como diria Milton Santos.

* Publicado no Boletim do IPS de
**Doutorando do Curso de Desenvolvimento Regional e Urbano da UNIFACS, Professor Titular do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da UEFS, Pesquisador do IPS







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