sexta-feira, 30 de julho de 2010

ARTIGO

CONSIDERAÇÕES SOBRE O EXCEDENTE ECONÔMICO A PARTIR DE LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO: O TRATO DOS VIVENTES

Nilton Kosminsky*

“Quer dizer então que o Brasil se formou fora do Brasil? É exatamente isso: tal é o paradoxo histórico que pretendo demonstrar nas páginas seguintes.” (Alencastro, p. 9).

Nosso ponto de partida se assemelha ao do autor, com uma ressalva: a formação do Brasil se dá fora e dentro do Brasil. Ou seja, o processo de acumulação deste país, se remonta a uma zona de produção agrícola escravista, implantada dentro do Brasil, com sua contrapartida, a reprodução dessa mão de obra escrava, fora do Brasil, mais especificamente na África. É o mesmo processo de colonização, introduzido através de uma relação biunívoca, sob as bases de uma política mercantil, cujo chassi está dado por um singular movimento do capital comercial, que assim como comercializa sua mercadoria mão-de-obra, subverte-a em ferramenta de produção. Partia-se do princípio que o ingrediente necessário e de bom alvitre para o funcionamento da estrutura colonial, era a mão de obra escrava, não importando sua cor. Bem que se tentou a escravidão indígena no continente sul americano, apesar da enorme resistência empregada pelo clero, principal sócio ideológico da Coroa em suas empreitadas. É precisamente a combinação entre os engenhos açucareiros e sua mão de obra escrava, onde reside a possibilidade de transição de uma economia de coleta, baseada na exploração do pau-brasil e na compulsória mão-de-obra indígena, para uma nova engrenagem, uma nova forma, protagonizada pela Coroa, de extração do excedente econômico que se encontrava diluído entre a pirataria e o autoconsumo da colônia. Assim, ao garantir, de maneira paulatina, o controle desse excedente econômico, mediante as taxações do comércio negreiro e do “exclusivo” sobre a produção açucareira, a Coroa assume o papel motriz do processo de acumulação, garantindo o excedente gerado para sua reprodução, através da transformação das conquistas em economias tributárias, o que irá reforçar sobremaneira o poder central reinol. O malogrado sistema de Capitanias Hereditárias, introduzido em Brasil, Angola e na ilha de São Tomé, resulta, no caso angolano, na instalação de um sistema operacional análogo ao das encomiendas, que permite a concessão, de nativos e terras, aos conquistadores e jesuítas, mas que exigia em contrapartida o pagamento de tributos. Abria-se a cancela para a escravidão, na medida em que esses tributos, na maioria das vezes, devidos, eram pagos sob a forma de escravos que os amos (acepção usada por Alencastro) exportavam para a América. Ora, frente a essa possibilidade, aunado ao fato da inexistência de minas de prata, em território angolano, Alencastro sugere a pavimentação do processo escravista que aflora como a principal atividade extrativista do reino de Angola. Mais uma vez, a Coroa toma para si o projeto de garantir o excedente, na medida em que extingue o sistema de Capitanias Hereditárias em Angola nomeando um governador-geral, quase cinquenta anos depois da posse de Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil, em 1549. Ao finalizar o século XVI, encontramos uma das mais importantes formas de acumulação, desenvolvida pelo capital comercial, e com amplo respaldo reinol, que é a instituição do asiento que consistia em polpudos contratos realizados entre a Coroa espanhola e empresários portugueses cuja função era a comercialização de escravos para as colônias espanholas. Mediante a implantação do tributo nessa transação comercial, a Coroa portuguesa não só garantia uma importante fonte de renda, como assegurava, conforme afirmamos acima, o controle do tráfico negreiro. A reprodução do capital comercial está garantida, assim como a fonte originária de acumulação de capital encontra um importante elemento de concreção, na medida em que esses recursos se disseminarão pela Europa como um todo.

É interessante como Alencastro aborda o problema da centralidade na geração do excedente, desde um ponto de vista espacial, na medida em que determinadas regiões, que até o final do século XVII, se encontravam deslocadas do processo negreiro, se mantêm a margem do que o autor chama geografia comercial, como são os casos da Amazônia, Maranhão, Pará, Piauí e Ceará. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a Coroa faz inúmeras tentativas de inclusão dessas regiões, criando governos separados que voltam a ser reunidos sem, no entanto, se integrarem plenamente ao projeto de construção colonial. Como contrapartida, Angola aparece inteiramente ajustada ao processo negreiro.

A aurora do século XVII traz, entre erros e acertos, mais uma tentativa reinol, de concentrar o processo de extração do excedente econômico, gerado por sua colônia americana. Bloqueando prerrogativas anteriores, o Estado Absolutista português, limita a participação do capital comercial internacional, estabelecendo o monopólio metropolitano no além-mar, desencadeando um processo triangular, onde as mercadorias produzidas por sua colônia americana são exportadas através da metrópole que por sua vez, abastece sua colônia com aquilo que Alencastro chama de “fatores da produção”: os escravos. Fecha-se, portanto o círculo de produção e apropriação do excedente econômico colonial. Concomitantemente e de uma maneira visceral, a organização clerical, ainda encabeçada pelos jesuítas, se arvora o papel de vanguarda da política e da economia metropolitana nos territórios colonizados. Desponta a inquisição como a fantasmagoria impiedosa, convertida num verdadeiro aparelho ideológico reinol. A aristocracia portuguesa, acuada, costumava utilizar a artimanha do Santo Ofício em seu enfrentamento contra a burguesia ascendente, de origem judaica, e a essa altura já convertida em cristã nova, obrigando-a a se refugiar em terras mais brandas, onde o talmude e as riquezas fossem aceitos indiscriminadamente. Holanda, país protestante, acolhe os refugiados judeus, dessa nova diáspora, engrossando sobremaneira seu capital comercial. Sem dúvida, esse processo de êxodo tende a truncar o processo de acumulação interno em Portugal.

Alencastro (p. 33/34) cita com muita pertinência, alvarás régios datados de 1554 e 1559, onde se incentivam a construção de engenhos açucareiros e, em caráter de oferta, a importação de 120 escravos com desconto de 2/3 sobre as taxas de importação. É interessante ressaltar, que a corrente negreira, localizada no Caribe, mais precisamente no “laboratório” régio de São Tomé, se desloca então, e de forma definitiva, para a América do Sul. Não está por demais lembrar, que o primeiro Governador-Geral, aportou por essas terras em 1549, o que significa pensar que o processo de integração do escravo à agricultura açucareira é quase tão antigo quanto à própria colônia, salvo localizadas tentativas do uso de mão-de-obra indígena, ao longo do processo de colonização.

Gostaríamos de deixar registrado, de alguma maneira, um fato que nos parece de suma importância: a mudança qualitativa ocorrida na relação entre a Coroa e um importante setor do colonato, a partir da participação deste na guerra contra os holandeses que haviam invadido Angola (1641/1648) e, a expulsão dos mesmos de Recife e Olinda (1654). Esse fenômeno adquire relevância na medida em que a Coroa, fragilizada, emergindo de um longo processo de “restauração” (1580/1640) encontra nesse referido setor apoio financeiro e militar, obviamente capitaneado pelos mais graduados traficantes em operação na colônia, com enorme trânsito junto à Corte, membros inclusive do Conselho da Fazenda e do Conselho Ultramarino. Não é necessário insistir em que esses préstimos foram generosamente recompensados, pela Coroa, com importantes cargos de comando tanto em Angola como no Brasil. Para efeito de nosso recorte, interessa destacar que o mencionado entendimento e parceria, de cunho militar e financeiro, teve como resultado um novo olhar reinol sobre sua colônia, na medida em que, como afirma Alencastro, o processo de imbricação entre as duas regiões se apresenta então, a partir dessa experiência conjunta, como muito mais relevante do que havia sido percebido até então pela Coroa, ficando claro para ela, o papel complementar desenvolvido entre a economia brasileira que exporta açúcar, tabaco, algodão, etc., e a economia africana que, viabilizando a economia brasileira, exporta escravos. Ora o que pretendemos destacar é o papel essencial da região africana, no processo de acumulação originária brasileira, assim como sua contrapartida africana, a desacumulação em seu próprio território. A produção de sua mercadoria essencial, a escravidão, jamais se realizou internamente e sua reprodução, nunca foi responsabilidade do sistema e sim de suas lutas internas, tribos e famílias. O único beneficiário sistêmico foi o negreiro, vinculado ou integrado ao capital comercial. Um exemplo bastante elucidativo é a participação, através de uma verdadeira articulação de interesses, de traficantes e funcionários régios, tanto de Angola, como da Costa de Mina e Guiné, do financiamento da mercadoria escravo, para os senhores de engenho. Esse procedimento, sazonal, é verdade, permite avaliar a importância do tráfico, que a partir dessa iniciativa, passa a ter controle sobre o ciclo produtivo e, o que é mais importante, metamorfoseando-se em aval do reinvestimento na agricultura açucareira através de fatores da produção (escravos). Dessa maneira, o excedente gerado na produção, via financiamento, acaba por ser transferido para o setor mercantil, criando uma imbricação definitiva entre essas esferas, permitindo a consolidação do tráfico negreiro como elemento motriz da estrutura econômica colonial.

*economista, doutorando, pesquisador do IPS

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